terça-feira, 3 de agosto de 2010

O Ser (e a Fumaça)

..........................................................A Octavio Paz, em póstuma homenagem


Não... Este caso não é verídico. E não, não deveria nunca ter sido narrado: O que aconteceu deveria ser deixado preso na retira dos presentes, e daqueles ausentes, que se cravaram dentro daquele instante. Não, isto não é real. A realidade como o senso comum conhece não se aplica a tais condições, e no entanto, este é o mais próximo da realidade que se pode chegar. Uma subjetividade distorcida e dissonante, que ressoa como música de guitarra em alta amplitude por entre os ouvidos desprotegidos. O que foi feito desfeito não será, e no entanto, se multiplicará de acordo com a perspectiva em que se observa. Acima, apenas a lua os vigia.

Caminham lado a lado dois corpos, estrelas obscurecidas pelo brilho ofuscante da rua. Caminham, sem nomes e sem pesares (aprentes), como dois astros que se acompanham em meio à uma constelação de anônimos e indivíduos. Cantarola-se à noite uma valsa, um samba, uma música rara e qualquer, que se comunica sem saber com o satélite claro que os observa. Branca, a lua, os ilumina em sua profusão de assuntos, feridas que se alimentam, e aumentam, através de um sangue que verte neutro e quente, e se torna tinta fresca por cima do chão de asfalto.

Dois corpos, em meio à um deserto de pedra, concreto, prédio, pedregulho, uma sonoridade diferente de um dos habituais. Muro que se parte, e se renova, construção levantada abaixo do céu, e que no entanto, parece o tocar e ferir. Como uma agulha ou alguma outra coisa, que o perfura e penetra, sem no entanto, desta vez, o estrangular em sua profusão negro-estranha-e-azul. A paisagem se dá como uma fotografia, ou um desenho de muito bom gosto, feito por mãos indubitavelmente habilidosas, que não deixam escapar em sua abstração nenhum detalhe. A noite se vai assim, clara e perfeita, como num conto...

- Sabe? Eu estou emocionada... Disse um dos corpos, cortando o silêncio como relâmpago.

- Com o quê? Indaga o outro, com uma voz mansa, respondendo em seguida, como um clarão.

- Eu não sei... Eu não sei... Só sei que estou. E responde em eco como um trovão que segue e soa ao longe, sem no entanto, se importar, se avisa de fato, ou não.


A imagem os toma como numa tela de cinema, possuídos pela arbitrariedade visual que os pondera, se entreolham, se imaginam, figuras incondicionavelmente desconexas, mas que neste instante pertencem ao mesmo quadro, e sem ferir, completam-se sem maior estranheza. Tons terrosos, e quentes, e negros, e frios, se punham na mesma tela; Se harmonizavam com uma graça exemplar. Eram assim, dois corpos, enfileirados, frente a frente, pictografia que se rodeia com a câmera bem apontada, e no entanto, nunca suficientemente próxima.

Andavam pela grande avenida, direcionando-se à um lugar comum, à contra gosto, a contra-senso, contra, e a favor; A noite os guiava com sua brisa fria, e os direcionava à uma estação qualquer, embora bem definida. Se abraçavam e se beijavam ao rosto, como bons amigos, e bons irmãos, enraizados nas entranhas da noite desfigurada, que os proferia a caminhos tortuosos, e ruas mal habitadas. Enraizados, acima de tudo, mantinham-se firmemente a caminhar entre sotaques, e sustos, imprevistos não avisados, e não acostumados a acontecer. Trocavam palavras de teimosia, e sinceridade, risos, brisas breves, brigas sutis, que os faziam sorrir, logo em seguida. Com os dentes à mostra, mas nunca ameaças. Era a noite quem os observava. Não eu, não os transeuntes, não aqueles que do outro lado da rua despediam-se da cidade e preparavam-se para saltar ao ônibus, ou tomar um lugar apertado no trem. Era a Noite quem os comtemplava, enquanto os braços se apertavam, os risos se trocavam, e subitamente, os lábios se tocavam. Era ela quem se regojizava, neutra, por aqueles dois corpos, que em meio à multidão distonavam com sua inefabilidade.

-Calma... Disse ele, rindo-se.

- Desculpa, problema de intensidade. Respondeu ela com um rubor no rosto, suavemente, entre a timidez aparente, e séria.

- Não, tudo bem, não é problema de intensidade, é problema de intensidade na Central...


E assim, esquecendo-se da multidão ao redor, se dependuravam por entre a imensidão que os cobria. Dois corpos. Conversando-se, explicando-se, deixando-se, ainda que por um instante, se dissolver. Nas ruas da avenida, e da grande estação que ligava o coração ao Brasil; A espera de uma condução que sempre tarda. Pulsando como fogo, como o comboio que trepida nas linhas férreas dos trens, como a palavra que se profere inesperada da pena forte do poeta por cima da página em branco... Dissolviam-se os dois corpos, frente a frente, enlaçados, petrificados, emaranhados, com uma sutileza breve e nada leve, de quem nunca se põe a dormitar, sem entretanto, sentir a presença indiferenciadora do cansaço.

Eram, naquela noite, antes da próxima parada, dois astros a cair em um céu vazio.

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